É possível dissociar um rapper da sua arte?

Atualizado em 19/02/2019

Há algumas semanas, o rap foi pego completamente de surpresa com mais um caso de machismo e agressão à mulher. Através de suas redes sociais, Bivolt relatou que foi agredida pelo seu marido, o Neto, do Síntese.

“Hoje, após ficar ouvindo do lixo que o Neto chama de irmão, que eu era sozinha, que não tinha amigos, que eu só tinha beleza e mais um monte de coisa de alguém que não sabe uma vírgula do meu corre. Pq é um boy, mimado e não sabe limpar o próprio cu, que não precisa fazer corre para pagar as contas, eu cuspi na cara desse lixo q tava falando isso dentro da minha própria casa. Resultado: o neto vem correndo e me mete um murro na cara ‘não fala assim com meu irmão'”.

A rapper segue relatando outras questões do relacionamento, como o afundamento do companheiro nas drogas e até que ela mesmo foi quem escreveu o verso dele em “Poetas no topo 3.2“. Embora a ferramenta Stories, do Instagram – meio pelo qual as mensagens foram publicadas -, não mantenha as publicações por mais de 24h, o Rap + republicou tudo.

Neto não falou sobre o caso. Publicou no seu Stories fotos antigas com os olhos inchados aparentemente por agressão, como quem tenta justificar suas atitudes. Muita gente passou um pano.

Tem sido muito fácil pra nossa sociedade simplesmente descartar os relatos de agressão das mulheres, ainda mais quando a acusação é a alguém popular. Tratam como se elas estivessem querendo aparecer, fazer fama em cima. A real é que a Bivolt está, provavelmente, na sua melhor fase; ela tem nada a ganhar com isso.

Pelo contrário. Correr o risco de associar o seu nome, que já vinha numa ascendente popularidade, a alguém que faz tudo pela fama, como acabou acontecendo, poderia prejudicar a sua carreira. Ou seja, não faz sentido algum dizer que a rapper inventou ou exagerou sua história para se aproveitar da fama do parceiro.

Ainda mais por esse parceiro ser um cara que, era de se imaginar, teria apoio de boa parte do seu público e uma descrença geral, principalmente pelo conteúdo de sua música. Aliás, além do machismo escancarado na sociedade e a descrença nas denúncias de agressão contra mulheres, a outra parte dessa incredulidade é oriunda das mensagens positivas encontradas nas músicas do Síntese.

Temos uma dificuldade tremenda de acreditar que a pessoa que escreveu essas letras possa ser tão cuzona – há quem diga que foi o Leo (co-fundador do Síntese) quem escreveu a maior parte dos sons, mas isso fica pra outra publicação.

Esse é um tema muito recorrente nas artes em geral. O quanto você consegue separar o artista de sua obra? É possível ainda admirar as músicas do Síntese depois de descobrir que o seu autor é o tipo de cara que faz esse tipo de coisa?

É claro que o primeiro ponto aqui é o quão agressivo é pra você o que foi feito pelo Neto. É de se imaginar que quanto maior for a sua repulsa pelo que ele fez, maior será a sua repulsa por ele ou qualquer uma de suas obras. Essa seria a tendência; não é, necessariamente, uma verdade absoluta.

Para uma reflexão mais justa, podemos expandir essa questão para além de um caso específico. Digamos que o artista tenha sido racista, homofóbico, tenha agredido um animal; traga a questão o mais perto do seu “ponto fraco” possível.

O quanto você consegue separar o artista de sua obra?

Um segundo ponto nessa questão que acho fundamental é a importância da obra desse artista para você. Quanto mais importante, menor será a sua repulsa pelo que ele fez. Mais uma vez, essa é uma tendência, não uma verdade absoluta.

Digamos que você nunca tinha ouvido Síntese e o descobre por esse acontecimento, que, na sua opinião, é bastante repulsivo. É bem provável que você terá apenas uma imagem bem ruim do rapper e não o recomendará, nem suas músicas, de maneira alguma.

No entanto, existe um conflito caso você seja fã do rapper (a obra é importante pra você) e você sente repulsa pelo que ele fez (você sente repulsa por ele). Talvez você até venha a consumir as novidades sobre ele, mas é bem provável que terá uma certa dificuldade de gostar delas. Possivelmente, criará até uma nova série de questionamentos para as músicas antigas, que você até então adorava.

Percebe-se que é muito difícil separar o rapper/o artista da pessoa dele fora da sua arte. Mesmo se você considerar que o rapper é só a letra, a performance no palco e no clipe e que a sua aprovação por estas deveria ser independente da sua aceitação pelo que o rapper fala ou faz no seu dia a dia, ainda assim a questão é complicadíssima.

Existe uma tendência natural a conectar a criação e a criatura, embora nem sempre isso seja o melhor a fazer. Por exemplo, quantas vezes você desconsiderou um argumento apenas por que não gostava da pessoa que o estava fazendo? Você acha, realmente, que gostar ou não da pessoa implica na assertividade do argumento que ela está fazendo?

Imagino que não.

A informação correta pode vir tanto das pessoas que você ama, quanto das que você odeia; o mesmo vale pras informações incorretas. Nem tudo que o seu rapper favorito fala é ouro; nem tudo que o rapper que você não gosta fala é pura bosta.

Por isso, quando se trata de informação, do conteúdo e qualidade da rima, eu costumo dizer que “nenhum rapper me representa“. Uma maneira minha de dizer que você deve receber a informação, pesquisar, refletir e tirar suas próprias conclusões e aplicações no dia a dia.

Após esse processo, a participação do rapper naquele conteúdo é descartada. Mesmo se ele mudar de opinião ou fazer uma cagada dessas que o Neto fez, a validade daquela rima pra você continua a mesma. Aquela opinião se tornou sua.

O fato de o cara ter se mostrado um cuzão de bosta não tira os momentos felizes que aquela letra te fez sentir e você não deveria se sentir culpado se ainda te faz feliz, mesmo depois do ocorrido (embora, acho que isso seja meio utópico – dependendo do nível de repulsa, só de ouvir a voz no bagulho já vai te deixar irritado).

Tem um caso bastante peculiar nessa pegada que eu acabei descobrindo recentemente vendo (na verdade, só ouvindo, mas enfim) o canal do Pírula, um biólogo que fala sobre diversos temas, sempre tentando trazer um lado científico da coisa. Em um dos vídeos, ele fala sobre Charles Manson e relata que o célebre líder de um culto que matou nove pessoas, nos Estados Unidos, ali por 68-71, arriscava-se na música.

O curioso é que, depois que ele ficou famoso pelos assassinatos, as músicas explodiram e muita gente regravou ou utilizou algo do cara em suas composições. E ele é a porra do líder de um culto que matou 9 pessoas!

Será que eles fizeram isso como uma forma de homenagear Manson por concordar com ele ou simplesmente viram algum tipo de uso naquela produção que seria benéfica para eles e ignoraram de onde ela vinha?

Até que ponto você consegue separar o artista de sua obra?

Você conseguiria escutar um rap bom de um rapper que cê acha escroto e dizer que é bom mesmo?

Eu acho que é quase impossível separar o artista de sua obra, principalmente quando se trata de algo tão pessoal como é o rap. Ou, pelo menos, de algo que eu acho que deveria ser pessoal, embora eu saiba que a maioria usa o rap como se fosse uma espécie de Instagram das palavras, no qual cê só rima os bagulhos que geral vai achar você foda (ou qualquer outro adjetivo que você quer que eles achem de você) por rimar aquilo.

A gente espera que o rapper coloque a sua verdade na música e se a verdade dele é repulsiva para nós, com certeza mudará a forma como recebemos sua música. Como eu disse, isso não invalida a mensagem passada, mas disvirtua a maneira que ela chega pra gente e o que sentimos sobre ela.

Desde o acontecido, eu não escutei Síntese. Não necessariamente por causa do acontecido, mas não escutei. Talvez, nem vá mais escutar ou talvez escute caso alguém recomende alguma coisa, alguma linha, por curiosidade.

Concordo plenamente com Bryan Stevenson, que “não devemos ser definidos pelos nossos piores atos“, mas também concordo com a Souto MC, “sem massagem, sem desculpa, assume o que você diz / no estúdio o peito cheio, na rua se contradiz / não assume sua postura, não sustenta, não condiz”.

 

Adendo | 06/09

Desde a publicação deste post, tenho lido alguns questionamentos feitos sobre ele e gostaria de esclarecer alguns pontos. Não é algo que costumo fazer, mas visto que usei de exemplo um acontecido real e de grande impacto pra muita gente, acredito ser necessário.

  • Imparcialidade: não é de hoje que criticam os meus textos opinativos de serem parciais ou não serem jornalísticos. De fato, são parciais e não jornalísticos mesmo. Já faz um tempo que o Vai Ser Rimando voltou ao formato blog e, assim sendo, costumo dar a minha opinião pessoal nas publicações e não vejo problema algum nisso;
  • O Neto foi cuzão, sim: muita gente não gostou que chamei o Neto de cuzão, mesmo sem, supostamente, termos provas para o acontecido. Fui reler o texto e não o chamei de cuzão em momento algum, apenas sugeri que quem fizesse o que foi alegado, seria um cuzão. No entanto, em uma publicação no Twitter, chamei de cuzão mesmo que por tabela e a real é que reforço o que eu disse. Tenho 90% de certeza que o Neto realmente agrediu a Bivolt, mas, vamos supor que tenha sido em legítima defesa (o que pra mim não se sustenta porque eram dois homens contra uma mulher, mas enfim) ou que nem tenha acontecido a agressão, por que merda o cara não veio a público falar disso? É uma acusação pesadíssima, com várias questões relevantes pra carreira dele, e o cara se esconde com stories e “resposta” em shows apenas pros seus mais próximos? Cuzão é a palavra mais leve que consigo pensar pra descrever alguém que faz isso;
  • Por que eu acho que o Neto fez o que foi acusado de ter feito: o relato da Bivolt é bastante descritivo e faz todo sentido; o fato de o Neto não ter respondido, não ter se defendido publicamente como o caso pedia, só reforça essa veracidade. Tudo fica ainda mais encaixado quando cê vai atrás e descobre que existem outras verdades no caso – a questão do irmão dele é bem flagrante. Eu realmente acho que o Neto faria algo assim e não acho que uma letra de rap que ele supostamente escreveu há sei lá quantos anos vá mudar isso; nível de hipocrisia elevado é bem comum no rap;
  • Sobre dissociar o artista da sua obra: infelizmente, os comentários foram mais sobre o caso do Neto e da Bivolt do que sobre o tema central do post, mas farei uma continuação sem citar o caso porque é um assunto que acho que tem muito pra dar ainda e pode nos ajudar a entender melhor essa relação do artista com seus fãs e da obra com suas atitudes.

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