Atualizado em 19/02/2019
Pode parecer clichê, mas eu realmente acho que é possível aprender muito com o rap. Ou, pelo menos, abrir uma tremenda porta pro conhecimento através dele.
E nem me refiro aos ensinamentos de vida, como os versos do Racionais que “salvaram” tanta gente, mas a conhecimento como o que você deveria aprender na escola mesmo.
No entanto, este não parece ser o senso comum. Aliás, esse foi um dos motivos de eu ter criado o Vai Ser Rimando; queria transmitir o que eu via de tão grandioso no rap pra que as pessoas pudessem ver também e aplicar em suas vidas.
Lembro que, na época, tavam organizando um evento de marketing/publicidade/criatividade e sugeri chamar o Emicida como palestrante. É verdade que, em 2010, em Blumenau/SC, se você não “fosse do rap”, cê não conheceria o rapper paulistano, mas nem mesmo com a explicação das milhares de cópias vendidas a sugestão foi levada a sério.
Hoje, tenho certeza que os malucos dariam duas vidas pra trazer o cara.
Para a maioria, o rap é, na melhor das hipóteses, “apenas” música e, sendo assim, é recebido pura e simplesmente como entretenimento. A maioria não quer parar pra refletir e tentar entender o que exatamente foi dito pelo rapper; o flow, o beat, a possibilidade de dançar com aquele som interessam bem mais.
Nada contra esses aspectos, que também são importantes, mas quando não existe uma profundidade nos versos ou a compreensão dessa profundidade, é como se uma parte fundamental do rap se perdesse (mesmo que numa pegada diferente, tem bastante dessa discussão no texto que fiz sobre o Bolsonaro).
O Genius é uma ferramenta importante nessa busca pelo conhecimento através do rap, como eu já comentei naquele post sobre a supervalorização das referências. Porém, não é algo tão popular assim aqui no Brasil pra que possamos dar como garantida a compreensão da rima simplesmente pela explicação correta estar lá.
Por isso, fico bastante empolgado quando o(a) rapper leva as questões pertinentes do seu som, da sua luta, para outros meios. Especialmente quando as transforma em livros, que emanam tanto respeito da população.
Colocar suas letras em livros é uma ótima forma de fazer com que as pessoas enxerguem o conteúdo do rap pelo que ele é de verdade, indo além do entretenimento.
E é exatamente assim que se desenvolve o livro “Ideias que rimam mais que palavras”, estréia “livrária” do Rashid que me inspirou a escrever este post. Com as suas rimas como pano de fundo, o rapper conta diversas histórias pessoais e profissionais, mas também amplia a reflexão sobre uma gama de assuntos que permeiam suas músicas.
Assim como foi feito em “Poucas Palavras” e “Poesia para encher a laje” pelo Renan Inquérito, Rashid também destaca versos pontuais de sua vasta obra para contar uma história maior.
No entanto, enquanto aquele apresenta livros de poesias com atributos visuais, este destrincha suas linhas para explicá-las e inseri-las em um contexto que nos ajuda a entender melhor a vida do rapper, suas ideias e a existência de tais linhas.
É como uma conta verificada do Rashid no Genius em que os versos que ele escolhe explicar são mostrados cronologicamente (ou algo assim). Mas, além de entender as rimas e saber o que ele quis dizer através delas, o livro também nos mostra o contexto em que elas nasceram; como vivia o rapper no momento em que ele deu vida a elas.
Sem contar que, contar essa história no formato de um livro, como o Eduardo comentou sobre o seu “A guerra não declarada na visão de um favelado”, permite que você apresente a quem lê uma nova forma de adquirir conhecimento. Talvez, a pessoa que nunca tenha lido um livro ou não tenha esse costume e o faz porque é sua fã adquira o hábito da leitura.
Na mesma entrevista, o rapper destaca essa ideia citando a história de um dos maiores revolucionários que já vimos que poderia facilmente ter tido sua vida jogada no lixo se não fosse a leitura – você pode acompanhar isso de perto na autobiografia do Malcolm X.
Mesmo que muitas dessas informações possam ser extraídas de letras do(a) rapper, existe uma certa autoridade nos livros que é difícil ser alcançada. Mais do que isso, a própria publicação de um livro em si te permite caminhar por vários outros círculos.
Por mais que um(a) rapper até seja chamado(a) para eventos que vão além da música, além de shows, quando escreve um livro, estas portas tendem a se abrir com mais frequência e amplitude; a tendência é que você conheça outras pessoas e até lhe perguntem coisas diferentes; as oportunidades de levar o seu pensamento a um público completamente novo e a novos projetos é grandiosa (Rashid levou seu livro à Bienal, por exemplo).
É verdade muitas mudanças já aconteceram na maneira como as pessoas se relacionam com a música. Até pela atual facilidade em carregar infinitas delas no bolso, hoje as escutamos em qualquer lugar e, consequentemente, nos despertam os mais diversos sentimentos.
Já faz tempo que música não é apenas algo que você escuta nos seus momentos de lazer ou na festinha do final de semana. É verdade que sempre existiu quem se conectava em um outro nível a ponto de literalmente aprender com ela, mas isso tem se tornado cada vez mais global.
Até os prêmios têm visto a música e especialmente o rap com outros olhos. Em 2017, Jay Z entrou para o hall da fama dos compositores; ele se tornou o primeiro rapper na lista.
Em entrevista ao Nexo Jornal, Michael Eric Dyson, professor da Universidade de Georgetown nos Estados Unidos que leciona uma disciplina inteira sobre o rapper, destaca que “como foi difícil para o hip hop ser reconhecido como uma forma de arte legítima, seus compositores foram igualmente subvalorizados”.
Dyson ainda afirma que a premiação “significa a aceitação total e a maturidade de uma forma de arte da qual fazem parte alguns dos maiores artistas americanos da história”.
Já em 2018, Kendrick Lamar foi o primeiro artista fora do Blues e da música erudita a ganhar um prêmio Pulitzer por suas composições. De acordo com o Nexo Jornal, o Pulitzer definiu o álbum do rapper como “uma coleção virtuosística de canções unificadas por sua autenticidade vernacular e dinamismo rítmico que captam a complexidade da vida afro-americana moderna”.
A parte escrita da composição de um rap é a principal parte do seu todo, assim sendo, ao premiar o compositor que existe no rapper, você também está destacando sua escrita.
Em 2016, Bob Dylan levou o Nobel de Literatura pelo conjunto da obra, sendo o primeiro letrista a alcançar tal feito. Fica claro que a música tem se tornado, cada vez mais, uma autoridade em conteúdo.
Não estou dizendo que todas as músicas possuem conteúdo relevante – embora, até pudesse dizer isso porque relevância é subjetiva -, mas que, se ele existe, já é mais facilmente percebido como tal. É inegável que as coisas ditas em uma música ou mostradas num clipe têm sido mais questionadas, vide “This is America” e a enxurrada de análises.
No entanto, desde a origem do Hip Hop, o rap se posicionou como “a CNN do gueto”, como diria ChuckD. O conteúdo das músicas sempre trouxe muito mais do que ritmo, melodia e rimas. Pra quem faz parte da cultura, adquirir conhecimento pela música não é novidade. Como diria Emicida, “nossos livros de história foram discos”.
Assim, além das dificuldades próprias em escrever e publicar um livro, faz sentido pensar que um(a) rapper não escreveria por achar redundante com suas letras; já que ele(a) aprendeu muito com as de outros(as) rappers, seus/suas fãs podem fazer o mesmo com as suas.
Porém, adaptar a sua mensagem ou até passar uma outra mensagem através de um meio diferente pode ser algo positivo tanto para a ampliação do seu público como até para a monetização do seu corre mesmo que a essência do seu conteúdo permaneça gratuita.
Existe uma gama de benefícios em levar suas letras a outras plataformas, assim como o(a) rapper pode muito bem escrever um livro sobre algo com uma pegada diferente, como os do Gabriel o Pensador ou o mais recente “Amoras”, do Emicida – embora este também tenha surgido de uma de suas letras, um livro infantil dá uma nova perspectiva sobre o trabalho do rapper.
De fato, estamos acostumados a “ideias que rimam mais que palavras”, para usar a ótima definição do Rashid, mas ainda carecemos de rappers que idealizam mais do que rimas.
Reflexão sensacional, Guilherme! A importância da leitura e da absorção de conhecimento é imensurável. É maravilhoso o crescimento alcançado pelo Hip Hop, mas ainda me preocupa a impermeabilidade de uma parte do público frente a conteúdos mais profundos. Ao mesmo tempo que tenho essa preocupação também me mantenho esperançoso e otimista. Afinal de contas, é através desse desafio de entreter e veicular informações relevantes às pessoas é que nascem grandes e criativos artistas, que inovam em busca deste feito. O Hip Hop é foda!
Sem dúvida! Ao mesmo tempo que muitos artistas se acomodaram entretendo esses que não ligam pra debates mais profundos, outros buscam inovações e cada vez mais alternativas pra ampliar o debate. Agradeço o salve novamente, parça!