É possível dissociar um rapper de sua arte? – Parte 2: ghostwriting e o conteúdo da obra

Atualizado em 23/05/2020

Ainda existe uma cobrança tremenda para que rappers sejam a voz das quebradas e explanem todas as mazelas do seu povo quando pegam o microfone. Afinal, desde a sua origem, o Hip Hop age como a voz dos excluídos; a chance que as pessoas que não tinham voz possam falar e ser ouvidas.

Por causa dessa responsabilidade histórica e também dessa responsabilização – na qual as palavras valem tiros -, de ser a voz da comunidade ou a CNN da quebrada, como diria o outro, as letras de rap são tão facilmente atribuídas aos seus autores.

Até porque, enquanto um(a) cantor(a) de sertanejo ou pop, na grande maioria dos casos, não escreve suas letras – nem é pressionado para tal, já que sua grande qualidade é a parte vocal -, é até chocante quando um(a) rapper não escreve as suas.

Ao contrário da música pop, é muito difícil que um(a) rapper regrave a música de outro(a) ou lance uma música que seu nome não está em meio aos autores da letra. Por causa, principalmente, dessa associação do(a) rapper com o que canta, não parece fazer muito sentido um(a) MC lançar algo que outro(a) escreveu.

Quando a grande sacada da sua arte é uma junção perfeita de conhecimento, escolha de palavras e ritmo, parece impensável que alguém que utiliza letras de outros possa ser considerado um(a) MC.

Essa associação da letra com o(a) rapper que as rima é tão óbvia que quando um(a) rapper utiliza letras de terceiros tenta esconder o máximo possível. O chamado ghostwriting.

Ghostwriting ou “escrita fantasma” é quando alguém escreve algum tipo de texto para outro sem ser creditado. É uma prática bastante comum nos mais diversos tipos de literatura e chega até a ser bem aceita em algumas delas, como discursos presidenciais, por exemplo.

Embora espera-se que os(as) presidentes saibam do que estão falando e como se referir ao seu povo, não é esperado que estes escrevam todos seus discursos; ainda mais se levarmos em conta a enormidade de solenidades que participam e a quantidade de públicos específicos com os quais conversam. Só uma equipe poderia tomar conta de todas as variáveis as quais estão sujeitos.

É verdade que também existem inúmeras variáveis que precisam ser levadas em conta quando um rap é escrito. Talvez, em alguns momentos específicos, fosse até benéfico ter uma pessoa próxima ao(à) rapper que fizesse refletir algumas de suas linhas ou que ajudasse a melhorar algumas de suas imperfeições.

Por exemplo, de acordo com o Smoke DZA, nem sempre essa ajuda deveria ser vista de forma tão prejudicial; não é um atestado de incompetência total. “Alguns MCs são ótimos em escrever raps e são horríveis escrevendo refrões, então eles pedem a alguém para escrever seus refrões”, ele comentou a Forbes (a matéria está em inglês, a tradução do trecho foi feita por mim).

O Sabotage mesmo era um desses rappers. É bem sabido que o Helião, do RZO, escreveu boa parte de seus refrões, como ele comenta num trecho do documentário “Favela no ar”. Aliás, o Maestro do Canão teve até um caso em que pegou um improviso do Max B.O. e incorporou na música “Cocaína”, depois de ambos participarem de um programa de rádio.

Esses casos isolados não tiram nem um milímetro de todos os méritos do Sabotage. No entanto, se descobríssemos (bate na madeira!) que todas as músicas ou, pelo menos, as principais tivessem sido escritas por outra pessoa, seria difícil reverenciá-lo da mesma maneira.

Como diria o Emicida naquela que dá nome a este site, “é minha vida, cada verso dos alegre ao mais triste. Se fosse só cantar, eu cantava as que já existe”.

Por essas e outras que eu acho ainda mais complicado dissociar o(a) rapper da sua arte. Não apenas o flow, a métrica, a escolha das palavras e rimas são suas, como toda a opinião e o conteúdo que compõem aquela obra parecem ser. É quase que uma associação natural.

Claro que não é porque é natural que é bom ou verdadeiro. De fato, muitos(as) rappers utilizam de histórias de terceiros ou ficcionais em suas letras; o acontecimento narrado não é necessariamente atribuído a eles nesses casos, a ação do personagem da história não é vista como uma ação deles, mas ainda assim ela é transmitida do seu jeito, com suas rimas e seu ritmo próprio; é como se ele(a) a tomasse para si.

Por isso que quando um(a) rapper rima algo em uma música soa tanto como se ele(a) tivesse falando aquilo sob juramento. E embora esse obviamente não seja o caso, é assim que nos faz sentir, por toda atribuição histórica da figura do(a) MC.

E como a questão da dissociação é muito mais emocional do que qualquer outra coisa, eu diria que é tão difícil fazê-la.

É por isso que, de certa forma, eu entendo quem passou pano para o Neto, pra ficar em um exemplo já debatido por aqui – ainda acho uma passada de pano indefensável e não justificável, mas entendo. Eu entendo que pra alguém que conecta as letras profundas e com boas vibrações do Síntese à vida e às atitudes do próprio MC, é bem difícil acreditar que ele seja capaz de agredir alguém sem motivo aparente, especialmente uma mulher.

A coisa muda um pouco de figura quando falamos do Nog e a apologia ao estupro; você fica irritado(a) que um cara desses tenha tanto espaço e que uma mensagem tão repulsiva se espalhe pra tanta gente, mas você não espera muita coisa diferente dele. Não é uma surpresa. Não é uma ameaça assim tão grande ao ideal que você criou dele a partir de outras letras.

Quando o Louis C.K. foi desmascarado e assumiu as acusações de assédio sexual, a sua queda foi ainda mais dolorosa para a maioria – eu incluso – porque o tema de suas criações demonstrava o total contrário daquele comportamento.

Como bem descreveu o psicoterapeuta Avi Klein pro The New York Times, “O grande desapontamento para aqueles que eram fãs do trabalho do Louis C.K. é o quão forte o comportamento dele foi na contramão do nosso pensamento original sobre ele. Este era um homem que pareceu capaz de se conectar profunda e autenticamente com suas próprias experiências bagunçadas e, ao fazer isso, nos convidou a abraçar nossas próprias realidades bagunçadas”.

Em um dos blocos de um dos episódios do Papo de Segunda, eles discutem sobre o que pensam de o caráter do ídolo interferir na sua admiração por ele. Acho que só esse pequeno trecho já dá uma ideia de como essa é uma questão difícil.

Talvez um terraplanista consiga escrever um livro de culinária sem impor nas receitas teorias sobre a Terra ser plana e uma pessoa anti-vacinas consiga escrever crônicas esportivas maravilhosas. Eu acredito que não seria tão difícil assim respeitar ambas as obras pelo que elas são e não pelas crenças ignorantes de seus criadores (embora, eu talvez tivesse um preconceito bem forte de procurar tais materiais, pois terraplanismo e anti-vacina são intragáveis).

No entanto, existem algumas artes que parece que foram concebidas para serem a própria imagem de seu criador/ de sua criadora. O rap pra mim é o maior exemplo. Do mesmo jeito que as rimas refletem na nossa percepção do(a) rapper, as suas atitudes também refletem na nossa percepção de suas rimas.

Eu entendo que este seja um tema polêmico e que haja inúmeras opiniões diferentes por aí, além de uma enorme camada de nuances que precisam ser compreendidas. Afinal, ter a autenticidade de suas rimas – e, consequentemente, da sua própria autenticidade como rapper – confrontada por causa de suas atitudes, ainda mais quando falamos de atos asquerosos e até criminosos, não é o mesmo que discordar das opiniões do seu MC favorito/da sua MC favorita.

Pelo contrário, enquanto a autenticidade do(a) rapper é um ponto muito desejado na cultura, a concordância com todas as suas opiniões como consequência da admiração (ou vice-versa) é prejudicial. Discordar do(a) rapper em alguns pontos e mesmo assim admirar a sua arte deveria ser comum em uma cultura que cresce exatamente de pessoas querendo ser representadas por elas mesmas, querendo dar voz aos seus próprios sentimentos e não que outros falem por ela.

E, ainda assim, mesmo se todos nós concordássemos com isso, ainda seria necessário discutir até que ponto uma opinião passa a ser indefensável e motivo para não admirar a arte do(a) rapper também. Enfim, uma enorme camada de nuances perpetuam essa discussão.

A real é que por ser uma questão quase que inteiramente emocional, ainda mais no rap com toda sua ligação com seu discurso, torna-se uma questão muito particular. Como você lida com o fato de que alguém que fez algo que você considera abominável pode te fazer bem com uma de suas rimas? Ou melhor, como você se sente ao revisitar músicas que te faziam bem de rappers que você já não admira mais? Elas ainda te fazem bem?

Responde aí embaixo ou manda no e-mail e vamos trocar essa ideia!

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