Atualizado em 19/02/2019
Já faz um tempo que descobri em mim uma paixão pelas palavras que vai além da vontade de escrever. Gosto de ver como elas são escritas, como são utilizadas, seus significados e suas origens. E isso vale pra expressões também. Cê já parou pra pensar na origem de “vale a pena” ou “guardado a sete chaves”?
Grande parte desse apreço pelas letras vem da já mencionada vontade de escrever e da curiosidade inerente. Mas, uma parte considerável se encontra na tentativa de abolir do vocabulário alguns preconceitos, como os xingamentos machistas, tão facilmente usados no dia a dia, e as expressões racistas.
“A coisa tá preta” é uma que sempre me incomoda. Ela não é tão “criminosa” quanto “tinha que ser preto”, mas certeza que são da mesma família, farinha do mesmo saco. Algumas são usadas sem pensar mesmo, costume, tradição e até aquelas piadas sem graça que só fazem perpetuar o racismo pelas gerações.
Por isso, acho bem válido e interessante quando o significado dessas expressões é revertido. Por exemplo, quando a Sara Donato e a Issa Paz batem na gordofobia se intitulando Rap Plus Size; ou o Poeta Sérgio Vaz, em toda sua maestria, desmistificando a “magia negra”; ou quando o Emicida quer “devolver o orgulho do gueto e dar outro sentido pra frase ‘tinha que ser preto'”.
Até a própria “a coisa tá preta” já virou algo diferente na voz do Rincon Sapiência. Com a música, o rapper “busca ressignificar esta expressão idiomática que, junto a outros ditos populares, acaba por diminuir a autoestima do povo negro, carente de referências positivas relacionadas à cor de sua pele”.
E isso é, basicamente, o que a série “Luke Cage” faz também. “Luke Cage” funciona muito bem na ideia de dar um outro significado pra boa parte das expressões racistas que temos por aí. Não é só que o herói fodão indestrutível “tinha que ser preto”, mas ela é recheada de personagens negros, sem a estereotipagem tradicional.
E não é um filme cult, que pode ser incrível, mas quase ninguém vai assistir, ou um do Spike Lee, é a porra da Marvel junto com a Netflix, duas das maiores empresas do entretenimento hoje. E a série ainda chega num momento importantíssimo, no qual crescem nos EUA os protestos com o “Black Lives Matter”.
Aliás, a própria criação do personagem, lá na década de 70, também chegava num momento importante. Era a época do “blaxploitation”, um movimento que buscava “explorar” a imagem do negro, principalmente no cinema. O movimento é bastante questionável: enquanto tinha o lado positivo de destacar a imagem do negro na arte e abrir portas para vários artistas negros, o fazia, muitas vezes, com personagens estereotipados e/ou com produções comandadas por brancos.
“Luke Cage foi o primeiro super-herói negro a estrelar o próprio quadrinho”, explicou ao Brasil Post o jornalista Sean Howe, autor do livro “Marvel Comics: A História Secreta”. É óbvio que o interesse da Marvel com isso era muito mais pelo lado financeiro; é óbvio que o interesse da Marvel (e, agora, da Netflix também) continua sendo financeiro. Mas, isso não significa que a representatividade deva ser esquecida.
Quantos outros personagens negros de destaque você viu por aí? Não sei o que é pior, se é ter nenhum ou se é tê-lo, mas tão estereotipado que dá até nojo. Luke Cage é nada disso; é o personagem principal, é considerado um super-herói, embora ele não queira muito a fama, sem “gírias de mano”.
Sem contar que, junto com ele, vem também uma detetive negra com incríveis habilidades pra ler a cena do crime e destruidora no basquete. Diferente do que muitos poderiam pensar, Misty Knight não é a personagem feminina comum, criada apenas pra fazer par com o herói. Ela é uma heroína completa por si só e ainda vai fazer muito “estrago”.
E, pra mim, uma das paradas mais interessantes é que, em meio a inúmeros protestos contra a violência policial contra negros, nos Estados Unidos, você tem ali em destaque um personagem que não é nem afetado pelos tiros da polícia. E não é nem que ele tá com uma roupa de super-herói ou qualquer coisa assim, é um cara andando como outro qualquer, de moletom e capuz. Posso tá viajando, mas achei essa uma mensagem poderosíssima.
Pra nós, fãs de hip hop, a série fica ainda mais interessante. Além do quadro do B.I.G. na parede, que proporcionou esse take maravilhoso, tem a trilha sonora (co-criada pelo Ali Shaheed Muhammad, integrante do A Tribe Called Quest) que influencia diretamente cada episódio, até com o Luke recorrendo algumas vezes ao seus fones de ouvido, principalmente pra escutar Wu Tang Clan, e até aparição emocionada do Method Man.
Aliás, o integrante do Wu Tang ainda aparece sendo entrevistado pelo Sway (!!!) e mandando uma rima, “Bulletproof love” (“Amor à prova de balas”, minha tradução), em homagem ao seu ídolo.
Enfim, “Luke Cage” coloca os pingos nos “i”. É a rara produção com herói negro que não precisa recorrer a estereótipos ridículos pra se destacar, tanto popularmente quanto nas críticas. O “black power” nunca fez tanto sentido antes. A coisa tá finalmente preta de verdade!
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