Atualizado em 15/01/2017
O que você espera do seu artista favorito? Se ele for um pintor, provavelmente que ele exponha novas pinturas, apresente alguns desenhos ou pelo menos uns rascunhos; se for escritor, novos livros, publicações em um blog ou uns textões de Facebook, é o mínimo. Mas, e se for um rapper?
Não, esta não é a segunda parte da “O que realmente queremos dos rappers?“. Bom, se seu artista favorito for um rapper, você provavelmente quer que ele faça mais e mais rap; você provavelmente gostaria de escutar um som novo por semana, certo? Se for assim, eu diria pra você escolher com cuidado.
Assim como outras artes, o rap permite que artistas ganhem reconhecimento e respeito mesmo sem lançar muitos sons. Gosto assim; gosto quando o rapper trabalha muito bem as coisas que lança, explora as mais diversas opções daquele trampo antes de ir para o próximo. Até porque, eles adoram dizer que cada rap/disco é um filho, então, talvez não seja muito legal você ir gerando um atrás do outro sem dar a devida atenção após o nascimento…
Aliás, isso não é novidade alguma no rap brasileiro. Além do Marechal, que ganhou até notoriedade pelo respeito adquirido na cena mesmo sem ter lançado seu disco, existem outros exemplos, como o Marcello Gugu, que, embora já tenha lançado seu CD, com um nome bastante apropriado pra esta discussão, sempre trampa muito bem cada um dos seus lançamentos e desenvolve projetos ligados ao Hip Hop que vão além da música.
E isso não é exclusividade nossa. Nos EUA, logo ao lado de nomes como Kendrick Lamar, Drake e Kanye West, hoje, eu colocaria Lin-Manuel Miranda. Talvez, não como melhor flow ou em qualquer categoria atribuída comumente a rappers, mas com certeza um dos nomes de maior destaque no momento.
Eu não me espantaria se você nunca tivesse ouvido falar o nome dele ou escutado qualquer música dele. Pra ser bem sincero, eu também nunca escutei. Mas, se você costuma assistir a programas estadunidenses, você provavelmente já viu pelo menos uma rima do seu arsenal interminável.
No fim do ano passado, eu assisti à participação do Lin-Manuel Miranda no programa do Jimmy Falon, um dos talk-shows mais populares dos EUA. Além de exaltar muito “Hamilton”, a peça concebida pelo rapper, que já era um sucesso tremendo na Broadway, Jimmy também conta que ganhou um leilão que lhe dava direito a um improviso do Lin-Manuel como mensagem da caixa-eletrônica do seu celular.
Mais tarde, o apresentador, que conta com a lendária The Roots em todos os programas, fez uma “roda do freestyle” com Miranda e Tariq Trotter, vocalista da banda. A brincadeira era simples: o computador sortearia três palavras aleatoriamente e os dois teriam que fazer improvisos com elas; o tema era livre, desde que usassem as palavras em questão. O verdadeiro freestyle (ou quase isso; não dá pra saber se eles já sabiam previamente dessas palavras).
De qualquer jeito, a brincadeira era divertida e os dois mandaram bem. E alguma coisa me dizia que eu conhecia esse cara de algum lugar, mas eu só fui descobrir algum tempo depois, em uma outra entrevista do programa do Jimmy Fallon (sim, eu costumo passar um tempo vendo essas besteiras aí; às vezes sai algo bom, como a minha descoberta do Lin-Manuel Miranda). A participação era do JJ Abrams, que na época tava ainda pra lançar o novo Star Wars; ele comentou que havia ido assistir à “Hamilton” e achado incrível e contou como o Lin-Manuel Miranda acabou compondo com ele a “Música da Cantina” do “Despertar da Força”.
Eu pensei “porra, preciso lembrar de onde conheço esse cara”. Quando procurei por ele no Google, veio o estalo de onde eu o conhecia ainda muito antes daquele improviso no mês anterior.
Sim, ele era o Alvie, colega do Dr. House quando este aceita ser internado lá pelas últimas temporadas da série. Ele ainda voltaria em outro episódio, mas aquele especial de duas horas com direito a “freestyle” no show de talentos do local foi marcante.
Por mais que House fosse uma série até bem musical, por causa dos múltiplos talentos do Hugh Laurie, o rap não era um gênero muito usado e eu sou do tipo de fã que gosta de ouvir essa porra tocar principalmente quando “eles odeiam rap lá, mano”.
Mais recentemente, ele ainda apareceria até em How I Met Your Mother.
“Hamilton” e freestyle com Obama: eles odeiam o rap lá, mano!
Mas, não é algumas aparições na TV ou uns freestyles quaisquer que te tornam um rapper de destaque, pelo menos não na minha visão. Se fosse assim, até o Adnet poderia ser considerado nessa lista. O que realmente me chamou atenção no Lin-Manuel Miranda foi o musical “Hamilton”, que ele criou e é o grande destaque da Broadway desde sua estréia, em agosto de 2015. Em 2016, foi nomeado para 16 categorias do Tony, um recorde; venceu 11, inclusive o de melhor musical.
A peça é baseada na biografia de Alexander Hamilton, um dos Fundadores dos Estados Unidos, lançada em 2004 pelo historiador Ron Chernow. Você poderia rapidamente pensar que é só uma daquelas obras estadunidenses pra se vangloriar e pagar pau pra si mesmo, certo? Olha de novo, irmão.
Eu não vou contar aqui os passos do cara na criação da peça porque o mesmo que eu sei é o que você encontra na Wikipedia, mas eu preciso destacar o quão incrível é esse fenômeno. Primeiro, o óbvio: o cara levou, com um sucesso tremendo, o rap pra Broadway. O cara recontou parte da história dos Pais Fundadores dos Estados Unidos, um dos bagulhos de maior orgulho pros caras, praticamente inteiro em forma de rap, com batalhas e tudo!
E ELES ODEIAM RAP LÁ, MANO! Isso chamou tanta atenção e fez tanto barulho que algumas escolas estão pensando em adotar o formato das “batalhas de rap” usadas na peça no seu dia a dia pra incentivar os alunos a se interessarem mais por determinados assuntos.
Segundo e ainda mais importante: os atores usados para representarem os Pais Fundadores dos Estados Unidos são negros ou hispânicos. SIM, VOCÊ LEU DIREITO: ele transformou os caras que aparecem nos dólares em homens negros e hispânicos, aqueles mesmos que, em sua grande maioria, possuíam escravos e são os grandes orgulhos da nação. Isso é forte pra caralho!
“Nosso elenco se parece com a América de hoje e isso é certamente intencional”, disse Lin-Manuel Miranda. “É um jeito de te puxar para a história e permitir que você deixe na entrada qualquer bagagem cultural que você tenha sobre os pais fundadores.” Ele ainda completaria: “estamos contando a história de homens brancos, velhos e mortos, mas estamos usando atores de cor e isso torna a estória atual e mais acessível para uma plateia contemporânea.”
Além do incrível sucesso de crítica, de bilheteria, dos prêmios Tony, “Hamilton” ainda levou um Grammy de melhor álbum de um musical (Lin-Manuel Miranda já havia levado esse com sua peça anterior “In The Heights”, que também já tinha uns freestyles, uns hip hops). Em uma review desse álbum, que foi produzido pelo Questlove e o próprio Tariq, ambos da The Roots, a Billboard o colocou como o melhor de rap em 2015.
Pra fechar, Lin-Manuel Miranda ainda colou na Casa Branca pra mandar um freestyle com palavras aleatórias apresentadas pelo Presidente Obama. Tudo bem, tudo bem, o Obama curte um entretenimento e de vez em quando figura nuns números musicais, mas ver o rap assim lá na Casa Branca é bom demais de qualquer jeito.
Eu quero é mais. Não sei se o rapper pensa em lançar um disco, fora os temáticos de suas peças, mas quero muito conhecer mais do seu trampo e que crie cada vez mais. Vi que sua peça anterior, também de sucesso, chegou ao Brasil em 2014, com o nome de “Nas Alturas”, interpretada por atores brasileiros, é claro. Será que “Hamilton” cai pra cá também? Se o espírito da peça viesse, a ideia cultural que ela emana, já seria de grande avanço.
Esta publicação não é apenas a exaltação do trabalho incrível de um rapper. Não é só para pedir que, por favor, procurem mais sobre o trabalho de Lin-Manuel Miranda. Esta publicação é mais pra mostrar o quanto me admira quando transformam totalmente a estrutura de algo que já está consolidado. A história dos Pais Fundadores dos Estados Unidos já é sabida por eles, já tinha um lugar-comum aceito e “Hamilton” subverte isso tudo de maneira grandiosa.
E eu nem vi a peça; eu digo isso pela força cultural que ela despertou. Ainda mais quando é o rap/hip hop lá em cima, puxando o bonde e representando todo esse empoderamento. E tá cada vez mais lá, seja diretamente pela música, seja pela história de “The Get Down” ou até nos detalhes de Luke Cage.
O Hip Hop é foda. E se você leu até aqui, você também é e merece um bônus. Fique com a segunda participação do Lin-Manuel Miranda na “roda do freestyle”.
E que Deus abençoe a América (do Sul, do Norte e Central). E que a força esteja com vocês também e… Expelliarmus!
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