Entrevista Exclusiva: Mandrake, do Portal Rap Nacional, fala sobre as dificuldades da mídia do rap nas últimas décadas

Atualizado em 24/01/2022

Em 2014, quando o Vai Ser Rimando ainda era atualizado com uma frequência que não me fazia passar tanta vergonha ao notar, eu fiz uma entrevista por email com o Mandrake, criador do Portal Rap Nacional e da hoje extinta revista Rap Nacional.

Recentemente, ao mudar o site de servidor, eu acabei me deparando com essa entrevista em meio a uma quantidade interminável de releases de lançamentos recebidos ao longo dos anos.

Achei que seria importantíssimo fazer essa publicação, mesmo com quase 8 anos de atraso, não só por respeito ao Mandrake, mas principalmente pelo conteúdo relevante e atemporal sobre a dinâmica da comunicação no nosso meio.

Poucas pessoas podem falar sobre a mídia do rap com tanta propriedade como Mandrake, afinal, ele comanda, desde 2000, um dos maiores veículos da cultura hip hop brasileira, mesmo em meio a todas adversidades.

“Quando comecei a internet era muito lenta, discada e se pagava por minuto utilizado. As vezes era preciso mais de uma madrugada inteira conectado para colocar uma matéria”, relembra. “Fiquei mais de cinco anos trabalhando e investindo no site sem nenhum retorno financeiro, bem pelo contrário, tudo que eu ganhava em outros trabalhos eu investia em hospedagem e equipamentos para o site”.

Se hoje já é difícil ganhar dinheiro trabalhando com o rap brasileiro, imagina há 20 anos. É preciso “muita perseverança para não desistir no caminho”, como ele próprio relata. E foi essa perseverança e amor à causa que fizeram Mandrake dobrar a aposta: a primeira edição da revista Rap Nacional chegou em outubro de 2011, quando muitos veículos tradicionais de comunicação faziam o caminho contrário, da revista para o online.

“O impresso é um registro que pode ser guardado para sempre, ao contrário do online que é tudo muito rápido e acaba se perdendo”, explica ele. Cliente das bancas de jornais e revistas desde pequeno, Mandrake queria ver “seus manos” nas capas.

“Eu sou rapper, já sai em algumas edições, sei qual é a emoção de estar numa revista e tenho orgulho de mostrar isso para meus filhos. E é por isso que continuo na luta, quase insana, para manter viva a Revista Rap Nacional”, conta.

Como eu disse no começo, esta foi uma entrevista feita em 2014, ano em que a revista ainda estava a todo vapor. A última edição, de número 15, só sairia 2 anos depois, em 2016. Independente de grana, sempre escassa quando falamos de qualquer coisa envolvendo rap brasileiro, o objetivo da revista, como ressaltou Mandrake, era podermos guardar pra sempre as histórias contadas em suas páginas perpetuando assim a contribuição de muitos à cultura.

“É emocionante ver a reação das pessoas se vendo na revista. Na última capa [edição 9, lançada em maio/2014] tivemos o MV Bill e o Dexter. O Bill é um cara que circula muito na grande mídia e quando o convidei para ser capa, achei que isso nem fosse tão importante para ele. Mas no dia em que fui mostrar a revista pessoalmente ele até se emocionou e me falou que  até hoje só tinha sido capa de uma edição da revista Rap Brasil, ou seja, se não somos nós mesmos para criar nossos veículos de comunicação e valorizar nossos artistas a grande mídia nunca fará isso”, lembra Mandrake.

Entrevista do Mandrake ao MV Bill, em 2014.

De fato, quase 8 anos depois, seguimos com pouca representatividade nos grandes veículos de mídia, com coberturas rasas e, na maioria das vezes, sensacionalistas. Se algo mudou é que tanto o público quanto os próprios artistas dependem cada vez menos das mídias tradicionais e podem se comunicar através das redes sociais.

Redes estas que ampliam a participação dos comunicadores do rap brasileiro que, sem estrutura e investimento para cobrir grandes eventos ou fazer grandes reportagens, não servem mais tanto como intermediários entre o artista e o público, mas como criadores de novos tipos de conteúdo, como “reviews” de álbuns, “reacts” de músicas, criação de memes e tantas outras figurinhas carimbadas da Internet de hoje que geram milhões de views sem praticamente qualquer retorno financeiro quando se trata de hip hop.

Mas, seguimos, pois assim como o Mandrake, o “amor ao hip-hop e a vontade de ajudar com que esse ritmo que era tão marginalizado pudesse conquistar seu espaço e mostrar seu talento na internet” não nos deixará desistir.

Confira a entrevista completa abaixo:

Qual o ponto de partida da sua história com o Hip Hop e aquele momento que você fala: “preciso fazer algo mais do que só escutar”?

Comecei a ouvir rap ainda na infância, por influência dos primos mais velhos e também de um tio meu que hoje é falecido. Todos éramos moradores de periferia e no inicio dos anos 90 era o que predominava, o RAP era a trilha sonora das quebradas. Quando comecei a frequentar os shows logo percebi que poderia contribuir. Sempre levava minha câmera e fazia fotos dos shows, então comecei com um blog para postar as fotos. No inicio não tinha condições de pagar a entrada de todos os eventos, na verdade não tinha grana nem para a condução, pulei muita estação de trem e muro para entrar nos eventos, passei por baixo de catraca de ônibus, já apanhei de segurança e fui expulso de muitas festas, sem contar as noites que durmi nas ruas do Centro de São Paulo ao esperar amanhecer e ter condução até Osasco, onde morava. Fiquei mais de cinco anos trabalhando e investindo no site sem nenhum retorno financeiro, bem pelo contrário, tudo que eu ganhava em outros trabalhos eu investia em hospedagem e equipamentos para o site. Só depois de cinco anos é que o site começou a se pagar e de certa forma gerar algum lucro. Foi preciso muita perseverança para não desistir no caminho. Foi o amor ao hip-hop e a vontade de ajudar com que esse ritmo que era tão marginalizado pudesse conquistar seu espaço e mostrar seu talento na internet que não me deixou desistir. 

Quando você criou o site RAP Nacional, a Internet não era nem 1% do que é hoje. Que tipo de diferença você percebe em gerenciar um site de RAP hoje e gerenciar um há 10 anos?

Hoje é muito mais fácil, desde as condições financeiras até técnicas. Quando comecei a internet era muito lenta, discada e se pagava por minuto utilizado. As vezes era preciso mais de uma madrugada inteira conectado para colocar uma matéria. Para se ter uma ideia, as primeiras coberturas fotográficas foram feitas com câmera que usava filme, depois de um tempo eu conseguia a grana para revelar, scanear e só então publicar. Os layouts do Portal Rap Nacional foram desenvolvidos por mim, no início eram feitos em HTML cru, tudo baseado em códigos e programação. Para postar uma notícia era preciso baixar o site do servidor, editar os códigos e enviar novamente. Hoje até do celular é possível atualizar. Sem falar que o acesso a internet naquela época era para poucos,  então a visibilidade do conteúdo era bem menor. Hoje temos mais de 100 milhões de pessoas conectadas a internet, que também chegou com força total nas favelas e isso faz toda a diferença. 

Nessa mesma linha, temos hoje uma Fórum que abandonou a revista impressa pra investir no site. De certo modo, você fez o contrário. Por quê? O que você viu no modelo impresso que você não tinha no modelo online?

O impresso é um registro que pode ser guardado para sempre, ao contrário do online que é tudo muito rápido e acaba se perdendo. Sempre fui fanático por informação diferenciada, desde pequeno sou um grande cliente das bancas de revistas e jornais. Eu não me conformava com o fato de um movimento como o hip-hop não ter um veículo impresso e não ver os meus manos nas capas de revista. Desde quando a Revista Rap Brasil fechou eu tinha vontade de lançar uma nova revista, para de certa forma, dar continuidade a esse registro. Tenho quase todos os exemplares da Revista Rap Brasil e acho muito louco parar para ler as reportagens de anos atrás. Eu sou rapper, já sai em algumas edições, sei qual é a emoção de estar numa revista e tenho orgulho de mostrar isso para meus filhos. E é por isso que continuo na luta, quase insana, para manter viva a Revista Rap Nacional. 

Ainda mais que você lançou uma revista de RAP. Se já é difícil conseguir anunciantes num tema comum, no Hip Hop é ainda mais. De um lado, o preconceito das grandes empresas; do outro, a pequena disponibilidade financeira das pequenas empresas e empresas especializadas no assunto. Você tem notado isso? Como tem feito pra contornar?

Até hoje não conseguimos chegar nos grandes anunciantes, mas evoluímos bastante e aos poucos as empresas estão percebendo o quanto o público do hip-hop é importante. Cada edição da revista é uma batalha, já que o custo para impressão é alto e 90% das portas que batemos são fechadas na cara. Mesmo assim,prezamos pela qualidade do papel e da impressão e isso tudo é grana. Já tive que vender muita coisa até um carro meu para pagar divida da gráfica e segurar as pontas de gente que anunciou, não pagou e sumiu. Quando o assunto é RAP, tudo é mais difícil, sempre foi, mas sou teimoso e não admito fazer algo inferior, porque o hip-hop merece o melhor. 

Você mesmo publicou no site uma reclamação sobre a Virada Cultural ter investido 3 milhões em publicidade e nem um puto ter caído pro Hip Hop, mesmo tendo inúmeras atrações no evento. Por que você acha que isso acontece e rolou alguma resposta de alguém de lá?

O Portal RAP NACIONAL, assim como eu, nunca recebemos 1 centavo do governo, sempre fizemos nosso trabalho de forma independente, em meio a tantas dificuldades é no mínimo estranho que um evento onde o RAP predominou a campanha seja investida toda em veículos que não são especializados, pelo contrário, grande maioria dos veículos que mamaram, no passado recente criticou e marginalizou nosso movimento, mas isso foi apenas um pingo da revolta. Algumas pessoas do Hip Hop se sentiram prejudicadas, teve gente que cantou e não ganhou um centavo e quando a lista de gastos veio a tona a surpresa foi grande, várias personalidades entraram em contato comigo e pediram para que o site investigasse o que aconteceu, infelizmente não tenho este poder de investigar ninguém, mas assim como o RAP, nós também somos a voz dos que não tem voz, o que pude fazer foi escrever um artigo com minha opinião para não comprometer ninguém e expor toda indignação, não só minha, em relação ao evento. Teve gente que não gostou da minha atitude, rolou até ameaça e ofensas que estão engasgadas, mas sigo em frente, estou do lado dos desfavorecidos, sempre.

Mas, a revista tem saído e temos visto muita gente falando bem, os próprios artistas também. Pra você qual a grande importância dela e o motivo de você ainda continuar lutando por ela? Já pensou num “próximo passo”? 

As vezes dá vontade de desistir da revista, porque é muito dificil mesmo. Não é à toa que ela é a única revista de hip-hop, manter uma publicação como esta é quase que loucura. Mas até hoje os motivos de desistir foram menores do que os que me fazem continuar na luta. Eu acredito na revista e por isso sigo na batalha para que ela continue na ativa. O reconhecimento por parte do público e dos artistas também é outro motivador. É emocionante ver a reação das pessoas se vendo na revista. Na última capa tivemos o MV Bill e o Dexter. O Bill é um cara que circula muito na grande mídia e quando o convidei para ser capa, achei que isso nem fosse tão importante para ele. Mas no dia em que fui mostrar a revista pessoalmente ele até se emocionou e me falou que  até hoje só tinha sido capa de uma edição da revista Rap Brasil, ou seja, se não somos nós mesmos para criar nossos veículos de comunicação e valorizar nossos artistas a grande mídia nunca fará isso. 

Pra terminar, gostaria que você falasse um pouco mais sobre a comunicão no RAP como um todo. Se levarmos em consideração o tamanho do gênero no paÌs, podemos dizer que temos até poucos sites; programas de TV, rádio, impressos, nem se fala. O que você acha que falta pra dar uma guinada nisso e colocar os nossos veículos especializados no nível de veículos tradicionais ou aqueles especializados em outras culturas que também só crescem?

O rap é um dos poucos estilos musicais que tem uma mídia própria. É claro que somos carentes em muitos sentidos, mas eu acho que temos uma mídia eficiente, com importantes sites, alguns programas de televisão, rádio e blogs bem legais surgindo a todo momento. Somos fortes sim, se o rap esta onde esta hoje, grande responsável por isso são os comunicadores que fazem parte do movimento e colocam o coração na hora de trabalhar, pois quando este segmento não tinha espaço, fomos nós que criamos o espaço e alimentamos o público. A grande mídia hoje divulga e procura o RAP só porque dá audiência. O rap passou por um período de estagnação e por consequencia os veículos de comunicação também passaram por uma época difícil, onde alguns sites até fecharam. Outra coisa que acho importante falar é que onde as portas estão fechadas para o rap é preciso se organizar e abrir.

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