Atualizado em 19/02/2019
A esperança com a chegada de 2017, que, embora seja praticamente apenas uma mudança nos números do calendário, trazia uma luz, de acordo com boa parte da população, após um catastrófico 2016, parece não ter se concretizado.
O ano mal começou e já tivemos um massacre com 56 mortos, em um presídio de Manaus. Talvez você nem tenha ouvido falar sobre o assunto ou tenha visto apenas de relance, pois houve pouca comoção nacionalmente. Afinal, entre os mortos estavam apenas detentos, uma disputa de facções.
E para um país em que mais da metade da população (57%) acredita que “bandido bom é bandido morto”, isso não é surpresa. Muito menos quando o Secretário da Juventude desse mesmo país defende tais mortes afirmando que “tinha que ter uma [chacina] por semana“.
O preconceito contra presidiários e ex-presidiários é evidente e a tendência é que ele aumente com o ganho de popularidade de tipos como Bolsonaro, que homenageia torturadores e quer ver a PM matando mais pessoas.
As redes sociais se tornaram reduto de declarações de apoio a toda essa violência. Pessoas defendem esse ponto de vista com a maior convicção em seus perfis e compartilham mensagens de páginas com milhões de seguidores com as mesmas convicções.
É inacreditável o quão hipócrita se tornou a nossa sociedade. A maioria das pessoas que defende o “bandido bom é bandido morto” não tem a menor noção do que esse “bandido” possa significar de verdade. Ou finge não saber, passa um pano pra si mesmo.
A grande maioria da sociedade comete delitos diariamente, como a pirataria (tanto ao baixar filmes e séries, quanto aquele gato que você fez na vizinhança); o uso de drogas ilegais; a ofensa aos coleguinhas no trabalho; dirigir alcoolizado; e tantos outros que, a princípio, podem não dar cadeia, mas diga isso pra quem prendeu o Rafael Vieira, que portava só as armas mais pesadas do bagulho: Pinho Sol e água sanitária.
A nossa sociedade, sem a menor informação adicional, trata presidiários e ex-presidiários como monstros; como seres inferiores. Sendo que, na verdade, com um descuido ou infortúnio um pouco maior podia ser eu lá, podia ser você.
Eu não estou comparando crimes, apenas estou dizendo que o fato de estar na cadeia não define a pessoa. Como diria Bryan Stevenson em um dos TED Talks mais incríveis que já assisti, “Precisamos falar sobre uma injustiça”: não podemos ser definidos pelos nossos piores atos.
Aliás, já que estamos falando sobre TED Talks incríveis, a Chimamanda Adichie, na minha opinião, complementa essa ideia quando fala sobre o perigo de conhecer apenas um lado da história. Adichie fala sobre quando era criança, na Nigéria, e, ao ler contos escritos por americanos e europeus, não acreditava que poderia existir personagens como ela.
Ela não fala diretamente sobre presidiários, mas do mesmo jeito que ler apenas contos estrangeiros de predominância branca fez com que ela acreditasse em um “mundo só para brancos”, acreditar que presidiários são pessoas inferiores ao resto da sociedade é um preconceito que discrimina pessoas e mata, como tantos outros já tão discutidos.
Afinal, cê não vai querer discutir que Gandhi era um ser inferior, né? Nelson Mandela? Martin Luther King Jr? Até o seu salvador Jesus Cristo já foi preso!
Malcolm X também já foi preso e pra mim ele é o melhor exemplo nessa situação. Quando Malcolm foi encarcerado, ele mal sabia ler e escrever; quando saiu, tornou-se mundialmente famoso pela sua oratória e debatia no mesmo nível com qualquer um, mesmo os estudantes de Harvard. Foi um dos maiores nomes na luta pelos Direitos Civis Americanos. Malcolm X foi um revolucionário de si mesmo.
Você vai dizer mesmo que não existe solução e que todos os presos deveriam ser mortos? Citei alguns nomes grandiosos que na história são realmente exceções, mas é só pegar os números dos projetos de ressocialização, que dão treinamentos e o primeiro emprego pós-exílio, e verá que o número de rescindentes é bem menor.
Entretanto, no Brasil parecem ignorar o que não convém para o benefício de uns poucos no poder e tratam cadeias como jaulas e seres humanos como animais selvagens. E ainda têm a cara de pau de se espantar quando esses presos passam a agir como tal. Nos Estados Unidos, a coisa não é muito melhor, como mostrou o documentário “13th”, sobre a 13ª emenda: presidiários estão a um passo da escravidão.
Como eu disse, não estou querendo comparar crimes; não estou dizendo que havia um Nelson Mandela em meio à chacina. Estou apenas apontando a relação de boa parte da sociedade com presidiários e ex-presidiários como um preconceito que discrimina pessoas e mata. E, como quase sempre com esse tipo de preconceito, ele é absurdamente burro.
Ao tratar presos como seres inferiores e não dar condições de recuperações, os devolvemos para a sociedade piores do que antes. Isso não nos ajuda como sociedade. A “medieval” tática do ensinamento pelo medo não funciona de verdade. Cê vai bater tanto no seu filho que ele vai parar de mostrar que está doendo por ter medo de você bater mais ou vai engolir o choro, ficar com raiva de você e descontar em uma próxima ocasião (até em outras pessoas).
E é isso que acontece nas prisões pelo País. O detento entra porque cometeu um crime, o sistema carcerário aplica uma “dor terrível” nele e o libera achando que ele aprendeu. Há casos que o detento fica com tanto medo da prisão que passa a seguir a lei, mas no mínimo vai ser uma pessoa completamente diferente do que poderia.
Na maioria das vezes, a raiva acumulada dentro da prisão e o convívio com outros tipos de criminosos os torna ainda mais agressivos e revoltados, podendo não só cometer os mesmos crimes, mas uns piores. A vontade não será de não cometer mais crimes, mas sim de não ser pego.
Ao ajudá-los na ressocialização, estamos também nos ajudando como sociedade. E isso não é defender bandido. Ninguém em sã consciência defende bandidos; ninguém chega e fala “tá certo roubar, sequestrar e matar”.
Hipocritamente, como não poderia deixar de ser, as únicas pessoas que vejo defendendo crimes são aquelas mesmas que apoiam o “bandido bom é bandido morto” de Bolsonaro, Conte Lopes e afins, que se sentem maiores que a lei e defendem aplicar justiça com as próprias mãos. A triste história dos justiceiros que Mano Brown cantava já na década de 80.
Essa de que “os direitos humanos defendem bandidos” se tornou ponto mudo pra mim desde que lançaram “Tropa de Elite 2”. Ali, a discussão ficou popular o suficiente pra praticamente todo mundo ter alcance às questões principais; ali, deu pra ver, pelo menos superficialmente, quem se beneficia realmente com as chacinas em prisões e como combatemos a criminalidade de maneira errada, abrindo espaço para mais problemas do que soluções.
O preconceito é algo que vai além do racional. Não existe razão alguma pra qualquer pessoa acreditar que um branco é melhor que um negro, que um homem é melhor que uma mulher, que alguém nunca detido é melhor que um (ex-)presidiário. São conceitos sociais, culturais e políticos que permanecem porque beneficiam alguns e acabam sendo passados adiante.
Às vezes, fomos/somos preconceituosos sem realmente querer ser. Crescemos em meio a isso e, em alguns casos, não percebemos o que realmente estamos fazendo. Mas, muito pior que isso, é crescer sendo alvo de qualquer um desses preconceitos. Então, antes de passar adiante comentários que são “só piadas” ou “só sua opinião”, pense duas, três e até quatro ou cinco vezes.
Cê deve tá pensando que faço parte daqueles que deixaram a sociedade “chata” porque apontam machistas, racistas, xenofóbicos e preconceituosos como você? Ótimo. Mas, não se preocupe, não vou fazer protestos para que te matem, EU não sou a favor do “bandido bom é bandido morto”.
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