Atualizado em 19/02/2019
Quando bares e igrejas são basicamente os únicos locais sócio-culturais da quebrada, fica difícil não perder as crianças e adolescentes para o tráfico. “O investimento no lazer é muito escasso e o Centro Comunitário é um fracasso, mas aí, se quiser se destruir está no lugar certo; tem bebida e cocaína sempre por perto”, já rimava o Mano Brown lá em 1993, na “Fim de semana no parque”.
Brown ainda reitera a falta de clubes poliesportivos e como todo esse agregado de “faltas” deixa a molecada sem incentivo. De fato, as atividades esportivas que um clube desses poderia oferecer com certeza traria uma nova perspectiva; o esporte tirou incontáveis jovens de uma possível vida no crime.
Como bem me disse o Gilberto Yoshinaga, autor da biografia de Nelson Triunfo, “[o Hip Hop] surgiu por falta de opções de cultura e lazer, com espírito de diversão”. Ou seja, o Hip Hop é, desde a sua origem, uma das principais alternativas a bares, igrejas e ao tráfico como ocupação do tempo livre em locais que o incentivo para praticar outras atividades não chega.
Mas, mais do que suprir essa falta de cultura e lazer, o Hip Hop, pelo menos em sua essência, toma pra si a importante responsa de apontar um caminho aos meninos e meninas que passam a conhecer e praticar algum de seus elementos.
“[O Hip Hop] Foi responsável por dar oportunidades para as pessoas nessas comunidades para que começassem a trabalhar um resgate social, cultural através da arte, pra que depois de um longo prazo começassem até a trabalhar a ascensão social”, definiu perfeitamente Marcello Gugu nesse talk incrível no TEDxBlumenau.
E é por causa dessa responsa do Hip Hop em dar perspectivas aos moleques das quebras do mundaréu que eu fico fascinado quando descubro projetos como a “Família UniVersos”.
Composto principalmente por crianças e adolescentes, o projeto, criado por José Roberto Augusto, o Robertinho Filho do Céu, é uma oficina de rap ministrada por ele mesmo que traz aos jovens “estudos da cultura Hip Hop, pra conhecer e saber que temos uma cultura que salva vidas e que podemos fazer parte dessa missão”.
Além disso, de acordo com Robertinho, eles aprendem “como construir as rimas, as combinações de palavras”; “como cantar no ritmo certo”; “a questão de elaborar cada flow”; “como segurar e posicionar o microfone e ter presença de palco e expressão”.
Por isso, rola incentivo à leitura e a cada música rolam reflexões, como: ser coerente e viver o que tá cantando, procurar ser diferente na escola, dentro de casa, na sociedade, etc., pois se assumirmos a missão de ser um MC, e a música tem poder, podemos e devemos ser e fazer a diferença nesse mundo.
Robertinho, em um bate-papo rápido que tivemos pelo Facebook.
O bonito projeto começou no quintal da casa de Robertinho, em Rio Preto/SP, quando este ensaiava seus próprios raps, que compõe desde 2004. Depois de um tempo, seus sobrinhos e os amigos deles, que brincavam em frente à casa, começaram a cantar suas música. “Me chamou muito atenção as crianças cantando minhas músicas, na hora eu pedi pra eles virem cantar ali comigo, achei lindo aquilo”, contou ele.
“Falei para eles que ia levar eles num evento para cantar comigo e eles gostaram da ideia. Tive o discernimento que seria dessa forma que eu ia começar a fazer algo no bairro, trazer esses meninos pra perto, semear os verdadeiros valores da vida no coração deles”, completou. Apareceu tanta gente que hoje a oficina se desenvolve no CEU das Artes.
E ela já deu mais frutos. Pouco mais de 6 meses depois do primeiro lançamento, “Eu acredito”, a família UniVersos lançou o segundo clipe, “Na mesma sintonia”. O trampo é uma parceria com o grupo Alta Tensão, também formado dentro da oficina de rap.
Inspirados por músicas como “Lição de casa” e “Sonhos”, do Inquérito; “Guerra”, do Marechal; “Rolê na vila”, do RZO, os jovens rappers rimam temas muito próximos do seu cotidiano, do racismo às drogas, sempre destacando mensagens positivas e a vontade de fazer diferente e vencer na vida.
Na visão de Robertinho, os jovens entendem e assimilam muito bem o que é passado, afinal, “já se passaram dois anos e esses meninos estão aqui fiéis e bem motivados a continuar”. Além do sentimento de pertencimento e das novas possibilidades que o rap abriu para eles, eles se divertem ao fazer isso e cada vez mais se distanciam de uma estatística tão presente nas quebradas: a alta taxa de jovens perdidos para o crime.
“Sobre as pessoas que acham que rap é violência para as crianças, é porque elas não conhecem realmente o rap, não conhecem a história da cultura hip hop, não se permitiram [conhecer]; e falar de algo que não conhecem na sua essência é injusto. Conheço gente que se permitiu conhecer de fato o rap e me falaram depois: ‘nossa, não sabia que o rap era assim'”, responde Robertinho quando pergunto sobre essa ideia disseminada por aí de que o rap é violento. “Violento é a negligência, o descaso do governo, as novelas, etc. O rap fala a verdade e ponto”, complementa.
As duras linhas do rap nada mais são do que as duras realidades de seus interlocutores. Se o investimento escasso no lazer levou “presentes” com doze balas no pente aos menininhos de 10 anos das comunidades pobres, hoje, com oficinas como a de Robertinho, já podemos ter a esperança desses ferros prateados encontrados no meio do mato – ou em terrenos baldios como no incrível clipe dirigido pelo Henrique Sezara – serem, na verdade, microfones.
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