Atualizado em 06/08/2018
Eu enganei os leitores deste site e preciso me redimir; minha consciência tem pesado muito nos últimos dias. Antes de mais nada, gostaria de ressaltar que foi sem querer, não era minha intenção. Eu acabei me perdendo em meio a tantas linhas, explicações e motivos pra falar disso ou daquilo.
Há quase dois anos, publiquei por aqui uma lista de 7 músicas que iriam te ajudar a entender a atual cena do rap brasileiro. Perdoem-me enrolá-los. Todas as músicas que citei são boas e, de fato, se adequam ao objetivo da criação da lista, mas, de verdade mesmo, cê só precisava conhecer bem uma delas: “Resistência”, do Kamau.
A música foi lançada, originalmente, no CD “Non Ducor Duco”, de 2008, com participação do Carlus Avonts. Era seu terceiro CD solo; o primeiro álbum, precedido pelo EP “Prólogo” (2002) e pela mix “Sinopse” (2005). O rapper já tinha uma boa caminhada na cena, o suficiente pra compreendê-la e expô-la de maneira tão precisa.
Em mais ou menos 32 linhas mais um refrão, ele abordou praticamente todas as temáticas necessárias. A grande acessibilidade que a tecnologia trouxe, que fez brotar um MC em cada esquina; a necessidade da união; a necessidade de se manter mente aberta pra se adaptar bem a tantas mudanças; o dinheiro e todo blablabla de vendido são apenas alguns dos tópicos levantados.
Da maneira que eu vejo, ele começa com uma geral sobre e para os que tão chegando. Chegar agora e querer sentar na janelinha não rola. Ou, até rola, mas cê quer ser uma tendência temporária ou manter o trono? A luta diária é longa e reserva algumas armadilhas, mas a cota é chegar, multiplicar e trincar com a gente. Depois, ele reforça sua posição e deixa um recado sobre a visão que muitos têm sobre o rap e os rappers de antigamente.
Ele aceita que é possível abraçar a mudança sem perder a raiz e aborda toda a questão do se vender, que perdura até hoje, da melhor maneira possível: “se a personalidade manda, só desanda quem muda a mentalidade pra abraçar a oportunidade” é a melhor definição pra um assunto que, de vez em quando, surge com tanta força que parece que nunca foi discutido; entenda essa linha e cê não precisará mais discutir sobre esse assunto.
Em meio a isso tudo, ele solta um refrão que pra mim deveria ser tipo um mantra do rapper. Primeiro que tem toda aquela pegada mais empolgante de um brado pré-evento, pré-show, aquele momento de reflexão que o artista fica ele mais ele antes de subir no palco; segundo que é uma boa posição pra qualquer um se encontrar: entre os que agradecem o conhecimento que veio antes, se alimentam e se fortalecem dele, escolhem por representá-lo de maneira inteligente e sempre com o pensamento de seguir, levar adiante.
Fala-se muito em “artista X acabou com o rap”, mas isso é de um pensamento tão raso que chega a ser triste. É pensamento de manchete de jornal da grande mídia pra puxar popularidade. Acreditar que uma pessoa ou um grupo tem poder sobre o rap pra representá-lo a ponto de ser o nível de medição de sua qualidade é absurdo.
Entendam que nenhum rapper é maior que o rap. Parem de pensar que ter um monte de “rapper ruim” ou “fã modinha” destrói a cultura. Na pior das hipóteses, o tempo vai passar, esses irão embora e a gente vai continuar por aqui catando os cacos e tentando juntá-los, de novo; resistência!
Valor não se define por preço, minha prioridade não mudou de endereço. O rap que eu conheço sempre vai resistir, enquanto eu existir, pois foi assim que eu aprendi a fazer.
Kamau deu aula mais uma vez, como falei na resenha do “…ENTRE…”. Ele foi tão certeiro que, mesmo no remix do som, não mudou uma linha sequer do seu verso. Sim, é normal fazer um remix só mudando a base, mas não tanto 4 anos depois; muito menos quando ambos são lançados oficialmente (em cópias físicas e tudo!); menos ainda quando cê muda a participação, neste caso do Carlus Avonts pela estadunidense Invincible; e quase impensável quando o autor disso tudo é o Kamau.
Por isso, por essas escolhas, muito além de um específico, o Guerreiro Silencioso entrou nos 12 discos de rap que marcaram minha vida; todo mundo sabe o cuidado que ele tem com seus trampos. Ele não fez simplesmente um remix de uma de suas músicas. Ele sabia muito bem que ao relançar o som dessa forma estaria reafirmando o que foi dito e pôde fazer isso com a maior tranquilidade e boa aceitação do público porque a letra era válida ainda em 2012, quando saiu o EP em questão, e continua válida até hoje, 2016.
Nada contra o gesto do Criolo em mudar o verso da “Vasilhame”, na nova versão do disco “Ainda há tempo“; foi uma bonita atitude, mas você relançar algo tão detalhado e específico sem precisar mudar qualquer coisa mesmo tantos anos depois é de uma percepção fora do comum. E não é que ele foi orgulhoso e não quis mudar de opinião, é que tudo que ele falou realmente virou.
Sim, sim, é verdade, se você for marcar, tem muitos versos por aí que se forem escutados vários anos depois ainda se encaixam muito bem; o Racionais tem músicas inteiras que são atemporais (não à toa são tão reproduzidos em scratches ainda hoje). Mas, o Kamau fez um pouco a mais: aquelas linhas precisavam ser escutadas pelos MCs e fãs que estavam vindo e ao relançar o trampo oficialmente, em um EP de inéditas, ele reforça o chamado.
Kamau fez mais que uma música boa, mais do que versos atemporais. Ele compreendeu o quanto precisou dessa mensagem quando “começou”, então ele a manteve e a amplificou. Hoje, é ele a voz da experiência pra tantos jovens e não tão jovens por aí; hoje, são os versos dele que são raiz e alimento pra fortalecer tantos que estão na caminhada. Kamau fez seu papel de MC e simplesmente cumpriu o que prometeu há 8 anos: ainda hoje, ele é a resistência!
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