Atualizado em 04/06/2014
Um show de RAP é sempre um momento único. Não pelo uso do freestyle que sempre é um diferente do outro, mas pelas vibrações do ambiente que sempre são renovadoras, independente de quantos cê já frequentou. Entretanto, este poderia ser um momento literalmente único; não é tão comum quanto gostaríamos um show em conjunto do Criolo e Emicida. Tudo bem que saiu um CD do áudio do show, saiu um making of e até o DVD, mas todo mundo sabe que não é a mesma coisa, ainda mais quando se trata do RAP Brasileiro, ainda mais quando se trata de Emicida e Criolo, juntos.
O evento em uma das casas mais “ricas” do estado, em um dos lugares mais “ricos” do estado, na praia de Jurerê Internacional, deixou-me inquieto. Claro que eu já sabia que o público dos dois rappers já variava sem distinção de classe há anos, mas isso ainda me incomodava um pouco: será que o sentimento vai ser o mesmo? Será que eles vão saber cantar as músicas ou só o refrão? Será que eles vão apoiar o artista ou vão vaiar um discurso mais político?
A praia a 100 metros da entrada é um convite irrecusável para chegar mais cedo. Entretanto, não era dia pra tal deleite. Se era pra falar de coisas tão belas, então que fosse de frente pro mar e de frente pra favela; se era pra falar de coisas positivas, que fossem positivas pra todos. Se a mensagem de conscientização do RAP pode mudar o pensamento de um playboy (o playboy de raiz, aquele que não tem respeito e nem humildade, independente do quanto tem de grana), eu não sei, mas acredito que possa ser um começo. Se o RAP salvou tantos nas favelas, por que talvez não poderia salvar muitos nos condomínios?
Era hora de testar, mesmo que de forma informal, essa teoria. Era hora de os “zicas irem lá” e mostrarem que com algumas mudanças é possível que “exista amor em SP” e por todo Brasil. E não foi preciso muito tempo pro público responder à presença do RAP Brasileiro. Desde os sons do Racionais e do Sabotage antes do show até o dedo no meio levantado em “Dedo na ferida”, o coro estava formado! Quando a batida toca, o artista está no palco e a letra vem à mente, parece independer de onde você vem; naquele momento, o sentimento de melhoria é comum, mesmo que em níveis diferentes.
Tudo bem que cantar as letras até papagaio aprende, mas quando as letras vão além da incrível “Não existe amor em SP”, que foi um show à parte, e chegam em “Demorô” e “Vasilhame”, você percebe que alguma coisa tem ali. Vamos dizer que sejam papagaios mesmo, então que sejam papagaios repetindo RAP, melhor do que nada; que sejam papagaios que pagam ingressos e compram produtos dos artistas independentes do RAP Brasileiro, ótimo!
Quando você está lá vivendo aquele momento único, você até esquece por um tempo que se sente um estranho no meio daquelas pessoas. Quando você vê um palco com Criolo, DanDan, Emicida, Rael e banda, você quer fotografar mentalmente cada detalhe pra não esquecer. Aliás, pra quem nunca havia visto um show do Criolo, que que foi aquilo? Criolo Doido é maluco! Lembro de ter pensado uma única coisa: “foi pra isso que paguei ingresso!”. Pra ouvir as músicas, nós temos computadores, mas estes não captam a emoção espiritual, como já dizia Marechal. Essa emoção é captada no presencial, lá no meio da muvuca, lá na frente do artista. Alguns dizem que o Criolo é performático demais… se for, é um ótimo ator, porque transmitir o sentimento real do que se está interpretando é para poucos.
Muitos jogadores de futebol relatam que quando entram em campo, transformam-se. Acho que isso funciona para cantores também, principalmente rappers que escrevem suas próprias rimas, na maioria das vezes baseadas em coisas que vivem ou sentem. Quando vão rimar essa ou aquela música, devem transportar-se pro momento que a escreveram ou para o acontecimento que os inspirou a escrevê-las e reviverem o sentimento. Estranho seria se não se transformassem! Estranho seria se seguissem o roteiro “perfeito” das apresentações com playback…
Mas, não! Criolo e Emicida pareciam estar lá de corpo e alma fazendo jus ao momento histórico que seria para muitos presentes e, provavelmente, para eles também. Claro que tinham certas ações programadas, mas era algo como uma “bagunça sincronizada”. Bagunça sincronizada esta que levou Emicida às pick-ups e DJ Nyack ao microfone algumas vezes. Bagunça sincronizada esta que fez todos voltarem aos pedidos de “mais um” do público com Ganjaman exclamando e gesticulando para seus colegas da banda voltarem aos seus postos. Você via os artistas saindo de sua tradicional posição e sendo eles mesmos, seja na interação com a banda e nos passos do Criolo, seja na “discotecagem” do Emcida.
Não são todos shows que duram duas horas. Não são todos artistas que voltam pro palco e dedicam uma considerável quantidade de minutos para cantar clássicos do RAP Brasileiro para um público que poderia nunca ter ouvido falar. Se os presentes não sabiam, fingiram muito bem, pois se escorregaram um pouco nos “nomes de menina”, chegaram em coro com Thaíde e DJ Hum, Doctor MC’s, Racionais, Sabotage e tantos outros.
É o sentimento do RAP chegando a cada vez mais lugares. Tudo bem, tem muita gente ouvindo RAP, mas tem pouca gente escutando; tem muita gente se dizendo super fãs de RAP e não entendendo e praticando as mensagens. Entretanto, é impossível discordar que quanto mais pessoas ouvem, mais provável que venham a entender a mensagem. Aliás, existem muitos que ficaram fãs há poucos meses fazendo pelo RAP o que muitos que são fãs há décadas nunca fizeram. Não tem a ver com tempo de conhecimento da cultura, mas a profundidade com que você se envolve.
Criolo e Emicida não possuem em seus versos a mesma contestação que Racionais e Facção Central? Talvez, mas isso não quer dizer que não sejam fundamentais para o crescimento e desenvolvimento do RAP Brasileiro. Só pelo fato de protestarem de diferentes formas, já fazem sua parte. Quando a mensagem é passada várias vezes da mesma forma, em algum momento, ela passará a ser ignorada. Foi o que aconteceu com o RAP Brasileiro. Estava sendo ignorado, tanto é que muitos moradores das quebradas mudaram para o Funk. O RAP hoje, na união de vários das antigas com os que vão chegando, tem conseguido mudar um pouco esse panorama, mas o caminho ainda é longo e se não houver essa união, ele vai parecer cada vez mais longo.
Criolo e Emicida fazem parte dessa mudança. Embora não sejam tão novos assim na cena, fazem parte daqueles que levaram o RAP para diferentes públicos e de formas antes quase inimagináveis. Fazem parte daqueles que utilizaram o RAP para fazer fãs de classes sociais diferentes refletirem sobre o mundo ao seu redor. Fizeram com que esses fãs não parassem em suas músicas, mas conhecessem a raiz de sua cultura, em músicas e entrevistas que apontam caminhos de conhecimento. Mais do que isso, levaram essas raízes aos shows em interpretações de clássicos e instigaram os presentes a procurarem e se informarem. Quantos não se tornaram fãs do RAP Brasileiro como um todo depois de atravessarem a porta de entrada para um show deles? Quantos não incorporaram o RAP a seus projetos sociais, pois viram que este era um caminho pra salvar mais moleques ao prestar atenção em suas letras? Quantos não se afastaram da “cocaine” e das “biatches”? Isso é progresso!
Você pode discordar de mim, aliás, você deve questionar e chegar na sua própria conclusão, essa é a base do RAP. O conhecimento por reflexão e por busca, não a aceitação do que é dado como fato. Questione, talvez, os quesitos fama e dinheiro, mas perceba a grandiosidade de dois moradores da favela que cresceram em meio a todas as dificuldades e por muitas vezes tiveram sua esperança arrancada lutando e quebrando barreiras para viverem de seus sonhos. Questione suas músicas, suas letras, mas perceba a grandiosidade de alguém que arrasta multidões de diferentes classes sociais, cores e credos para ouvir uma música que antes era quase que unânime como “de bandido”.
Você pode até questionar atitudes e posturas, mas antes deveria questionar o que de diferente e de tão bom você tem feito pra cultura que diz tanto amar. Você pode… não, você deve questioná-los! Mas antes, pelo menos, deveria respeitar quem pode chegar onde eles chegaram…
seja o primeiro a comentar