13th: de escravo a criminoso com apenas uma emenda

Atualizado em 19/02/2019

O Estados Unidos aboliu a escravidão oficialmente em 1863, de acordo com os livros de história. Em 1º de janeiro daquele ano, o então presidente Abraham Lincoln assinou o Ato de Emancipação, que tinha como ponto central a libertação de cerca de 4 milhões de escravos negros.

Em meio a várias burocracias, foi só em dezembro de 1865, com a aprovação da 13ª emenda no Congresso, que o país realmente proibiu a escravidão. É bem verdade que a situação do negro nos Estados Unidos era bastante problemática até pouco tempo atrás, com as lutas pelos Direitos Civis, com Martin Luther King Jr., Malcolm X, entre outros.

Se o racismo continua até hoje, a escravidão, no papel, continua proibida. A XIII Emenda diz, em sua primeira seção:

“Não haverá, nos Estados Unidos ou em qualquer lugar sujeito a sua jurisdição, nem escravidão, nem trabalhos forçados, salvo como punição de um crime pelo qual o réu tenha sido devidamente condenado.”

A emenda parece bem bacaninha quando você lê em meio a um texto legal sobre abolição da escravidão e compara as possibilidades com o que o país vivia antes dela. Mas, ela carrega um detalhe que a torna quase tão cruel quanto a própria escravidão: a possibilidade de alguém ser sentenciado à escravidão caso seja punido por um crime.

É bem verdade que, baseado numa recente pesquisa sobre “bandido bom é bandido morto”, eu diria que a maioria da população brasileira acharia maravilhosa especialmente essa parte. E embora ela destaque o “réu devidamente condenado”, sabemos que não é bem assim que as coisas funcionam. Aliás, cê tem uma chance pra adivinhar qual parte da população é a mais presente nas cadeias estadunidenses.

Acertou quem disse algo como “a mesma parte que descende dos escravos”. Não é algo tão direto assim, mas deu pra entender o ponto. E é exatamente isso que o incrível documentário “13TH” ou “A 13ª Emenda”, um original Netflix, destrincha brilhantemente, em pouco menos de duas horas de duração.

Pensa bem. O Estados Unidos é considerado um país livre, mas ao mesmo tempo é o que mais encarcera pessoas no mundo. Essas pessoas presas estão legalmente liberadas a serem usadas para trabalho escravo. Isso abre precedentes absurdos.

Eu apoio que o detento participe de oficinas profissionalizantes e trabalhe com algum tipo de remuneração que o ajude na ressocialização após ser solto, principalmente se o trabalho escolhido seja um que beneficie a comunidade em que ele está inserido.

Entretanto, é nada disso que acontece. Grandes empresas se aproveitam dessa “brecha” na lei pra conseguir mão de obra por um preço absurdamente baixo; mão de obra escrava. E isso só piora quando cê leva em consideração que, no Estados Unidos, existem inúmeros presídios privados. Se a Constituição permite algo tão grosseiro, imagina o que não fazem esses presídios que, declaradamente, visam o lucro.

É bem verdade que o governo fechou os presídios privados federais por esse motivo, mas os estaduais devem continuar e não são poucos. Por que você acha que o discurso de combate à criminalidade é tão obsessivo, seja no dia a dia, seja nas campanhas políticas? Porque existem muitas empresas que lucram com a indústria do medo; porque as cadeias precisam estar cheias.

E não é apenas cheias de qualquer pessoa, mas das “pessoas certas”. Ou melhor, neste caso, das “pessoas erradas”, pois a necessidade de prender fez com que inúmeros erros fossem cometidos. “Erros” não é a melhor palavra aqui, pois um erro pressupõe falta de intenção e não há nada no mundo que me faça acreditar que tenham sido equívocos honestos.

Quando eu disse que a grande maioria dos encarcerados descendiam de escravos, eu não estava brincando. Embora a questão da descendência possa não ser verdadeira, o fato é que, hoje, “temos mais afro-americanos sob supervisão criminal do que escravos em meados do século 19”, como mostra o documentário.

Não é preciso fazer muita força pra lembrar imediatamente da facilidade que os policiais têm em prender negros, isso quando não os matam na rua mesmo. Some a tudo isso o fato de que é praticamente impossível ter uma vida normal após sair da prisão; o fato de que alguém condenado perde o direito ao voto.

Se isso é horrível para o indivíduo negro, é também para a comunidade, que perde praticamente toda sua força democrática; é praticamente impedida de escolher seu representante. Se já não bastassem os legados da escravidão que continuam atormentando até hoje, a própria escravidão está de volta. Ou melhor, continua porque, na verdade, ela nunca foi abolida de verdade.

Embora os fatos apresentados no documentário sejam tristes, ele possui pontos muito felizes. A produção em si, o conteúdo, a forma como ele é apresentado, tudo digno de melhor documentário do ano, digno de Oscar. A direção é da Ava DuVernay, a mesma que dirigiu “Selma”, sobre Martin Luther King Jr.; uma das pouquíssimas diretoras no jogo, provavelmente a única diretora negra a ter a possibilidade de fazer filmes de tamanha projeção.

E, assim como em “Selma”, Ava contou mais uma vez com a parceria do Common na trilha sonora. E, assim como em “Selma”, no qual o rapper ganhou o Oscar junto com o John Legend por “Glory”, ele não brincou em serviço e lançou um som arrepiante, intitulado “Letter to the free” (“Carta aos livres/libertos”, na tradução literal).

A letra praticamente traduz o filme em forma de versos (a tradução abaixo é minha, não é a mais confiável do mundo):

“A escravidão ainda vive, olha a 13ª Emenda
Não com chicotes e correntes, tudo subliminar
Em vez de ‘nigga’, eles usam a palavra ‘criminoso’
Doce terra da liberdade, país encarcerado
Atirou em mim com o Reagan
E agora você quer o Trump
Prisão é um negócio, o Estados Unidos é a empresa
Investindo em injustiça, medo e sofrimento
Nós encaramos o ódio novamente
O mesmo ódio que eles dizem que vai fazer o Estados Unidos grandioso novamente”

Aliás, a relação do documentário com a sua trilha sonora é maravilhosa. São umas 10 músicas em destaque narrando partes cruciais do filme. É muita música negra; muita música de protesto; é muito rap pra ninguém botar defeito.

As leis dos Estados Unidos são bem diferentes das leis aqui do Brasil. Embora dividamos uma horrenda (falta de) qualidade no sistema carcerário, não temos a 13ª Emenda por aqui. Mas, temos o péssimo hábito de copiar atitudes ruins da política dos nossos colegas de continente; a intensa guerra às drogas que já dura décadas e Temer com a ideia de privatizar os presídios que o digam.

As PECs (Propostas de EMENDA à Constituição), definitivamente, têm assustado, mas não acredito que em algum momento abriremos uma brecha dessas em nossa Constituição. No entanto, é inegável o quanto as prisões assolam a comunidade negra brasileira também. Afinal, a população carcerária por aqui também é predominantemente negra.

Os frutos podres da escravidão não caíram muito longe da árvore: casas-grande, senzalas, navios negreiros são facilmente identificáveis na vida do negro brasileiro. “Boa esperança” vai além de uma impactante revolta de empregadas domésticas e a anatomia avantajada popularmente creditada aos homens negros; é um retrato bastante fiel de um país que anuncia que te protege nas manchetes enquanto te apunhala pelas costas nas letras miúdas.

 

Um comentário

  1. cesar
    18/10/2017
    Responder

    Os EUA nunca foram uma democracia…é lamentável a nossa mente copiadora que enxerga no tio Sam a terra prometida

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